segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

PROTESTO DE GOMES LEAL

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Data de 12 de Janeiro de 1912 o protesto que segue; é da autoria dum antigo anti-clerical convertido, o poeta Gomes Leal. Copiámo-lo dum jornal poveiro. Nele se faz um relatório a quente dos atropelos cometidos pela jovem República.

I

Protesto – primeiro que tudo – como convicto e sincero cristão, contra todas as tiranias, abusos e vexames, exercidos contra a igreja de Cristo e seus ministros. Protesto mais ainda contra todas as heresias, blasfémias, sacrilégios e espoliações perpetradas dentro dos templos cristãos com escândalo geral dos fiéis, e não somente contra tudo o que se exercido nos templos da Capital, como também contras as freguesias rurais e sertanejas, em que se hão profanado Crucifixos, Imagens, Hóstias, Cálices e Vasos Sagrados do culto e ritual católico romano, e em geral, contra tudo o que ataca a essência sublime da Pontifical Doutrina.

II

Protesto, em segundo lugar, como cidadão português, não só contra todas as violações do Direito Nacional, como também, em especial, contra a lei iníqua que coloca materialmente e espiritualmente os sacerdotes portugueses em inferiores condições às do clero estrangeiro. Protesto mais, como cidadão português, contra todas as violências exercidas sobre os domicílios particulares ou propriedades individuais, como todas aquelas que se têm praticado derradeiramente e que os jornais têm relatado, em Lisboa, Porto, Coimbra, Sintra, Seia, Azambuja, Portel, Aveiras de Cima, Alentejo, Amieira, Vera Cruz, Courela, Alqueva, Ribatejo, Moita, Rio Maior, Vargem, as duas Beiras e finalmente noutras várias localidades e em territórios coloniais.

Em todas estas insurreições populares contra a propriedade alheia, reconhece-se – é certo – o profundo grau de miséria pública, mas o pensador tem que reconhecer também o espírito niilista e de anárquica revolta que lavra, e que imprudentemente soprou sobre este povo simples e ignaro o intempestivo dogmatismo republicano.

Alguns já querem arrepiar caminho e moderarem-se, mas é tarde. As suas teorias condenam-nos, e hão-de voltar-se, num dia breve, contra eles próprios.

III

Protesto, em terceiro lugar, como velho democrata avançado que outrora fui, nosso tempos em que, com o meu estro e os meus cânticos inflamados, cantei e idealizei uma República radiosa e gloriosa como a futura Jerusalém do Apocalipse de S. João, capital de espirituais Gerações, de Livres Raças e de Generosos Povos, protesto, repito, contra a marcha desastrosa que os modernos dirigentes têm imprimido à República actual, fomentando em vez de riqueza, o Deficit Público, que já se calcula em cerca de nove mil contos para o ano corrente, descurando deploravelmente o fomento agrícola, a indústria, a instrução primária e secundária, que estão num perfeito caos, a autonomia colonial, base de toda a pública prosperidade, e finalmente desprezando de tal guisa tanto os africanos como os orientais domínios que correm grave risco de serem alienados algum dia, tal como o padroado do Oriente e como o património sul-africano, em proveito da Alemanha, da Inglaterra, da Itália ou outro qualquer sindicato potencial.

E protesto, com profunda e cava amargura da minha alma, por ver aquela minha radiosa utopia de outrora, a espiritual imagem simbólica que esbocei nas nuvens da Fantasia, modelada segundo as formas gráceis das Virgens de Pergolese e as rosadas teorias de Platão, Séneca, Tomás Morus, Campanela e Catão, derribada agora, escaqueirada e salsujada no pó rasteiro e vil, e transformada em banco de onzenas e ganâncias – em mercado e tráfico de consciências e almas sujas – em tribunal e pretório de Pilatos, de Judas, de Caifás e Robespierre de meia escudela.

IV

Protesto, em quarto lugar, como velho jornalista, contra todos os atentados à liberdade de Imprensa e portanto contra todos os assaltos, incêndios e rapinagens contra redacções e tipografias de jornais portugueses, como “O Liberal”, o “Correio da Manhã”, o “Diário Ilustrado”, “O Povo d’Aveiro”, “A Palavra”, e contra todas as assolações futuras que s e rumorejam, incluindo, é claro, nas passadas assolações, os prejuízos que sofrem os centros académicos de Coimbra, Setúbal e Porto, saqueados e incendiados.

V

Protesto, em quinto lugar, como filósofo e pensador humanitário, contra todas as brutalidades e sevícias infligidas contra vários sacerdotes, presos políticos e pseudo-conspiradores, conduzidos indecorosamente às masmorras húmidas e subterrâneas do Alto do Duque, como um rebanho trágico e ululante de reses feridas no matadouro, e no meio das vaias, urros, apupos e bofetões de um desequilibrado povoléu, mal educado ainda para poder compreender bem os direitos de um povo culto e livre.

VI

Protesto com lágrimas, finalmente, na minha qualidade de Poeta, e portanto como adorador incondicional da sublime Lusitânia, do Ideal Transcende, da Justiça Intemerata, e da Santa Harmonia, contra este existente desolador de Negação e de lívida Descrença, porque em Portugal desgraçadamente a Religião já hoje perdeu a sua auréola divina e o seu místico resplendor, a Fé a sua língua de oiro e as suas asas de fogo, a Concórdia e a Paz a sua verde oliveira de pacíficos ramos, e a Justiça a sua túnica branca e as suas balanças imaculadas – em que V. Exa., Sr. Ministro da república, introduziu pesos falsos.

Janeiro, 1912.

Gomes Leal

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A NAU AFONSINA

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Sátira contra Afonso Costa, em paráfrase a A Nau Catrineta, publicada n’O Poveiro de 21-3-1912, a partir da versão saída n’A Nação. Esperava-se para breve o regresso daquele político, que viajara para a Suíça.

Lá vem a nau Afonsina

Que tanto dá que falar!

Ouvide agora, cidadãos,

Uma história de espantar.

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Passava já de dois meses

Que tinha ido passear;

Já não havia repórter

Que o quisesse entrevistar.

Meteu pernas a Paris

P´ra mais alguém arranjar;

Mas era tão conhecido

Que ninguém o quis aturar.

Deitou sortes ao acaso,

Quem havia de procurar.

Logo a sorte foi cair

No francês Clemenceau.

- “Colega, ilustre colega,

Eu p’ra minha terra vou

E peço que por cá digas

Que a coisa consolidou”.

- “Já me não iludo com essas,

Nem tão pouco ingénuo sou,

Nem me deixo embarrilar,

Nem no teu embrulho vou”.

- “Colega, ilustre colega,

Olha que o Augusto falou

E disse que a Inglaterra

Junto de nós se postou”.

- “Catita, muito catita,

Colega do Separou!

Então muda de figura,

Já cá não está quem cantou;

E vou dizer nas gazetas

Que a coisa consolidou.

Que é bela a tua república,

Que tem lindos radicais”.

- “São todos meus filiados,

E não há outros iguais;

Hei-de oferecer-te uma cria,

E se quiseres pede mais”.

- “Teus filiados não quero,

Fazem crise nos favais”.

- “Dar-te-ei um par de primos

Lá das choças sem rivais”.

- “Não quero primos das choças,

Que têm bombas e punhais”.

- “Dou-te então o Bernardino,

O melhor dos cordiais”.

- “Não quero o teu Bernardino,

Que faz falta aos arraiais”.

- “Que queres tu, querido colega,

Que presente te hei-de dar?”

Afonso, quero o teu jornal

Para a ele… me enxugar!”

- “Renego de ti, colega,

Estavas comigo a chuchar!

O jornal é da minha alma,

Sem ele dava-me um ar”.

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Fez-se à bela a boa nau,

De mansinho a navegar;

O Clemenceau disse adeus

Com o olho esquerdo a piscar…

E à chegada do Afonso

Vivório se ouvia estalar.

Crispim

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