domingo, 7 de fevereiro de 2010

UM LEILÃO NO EX-COLÉGIO DAS DOROTEIAS

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O Dr. Jorge Barbosa, ao escrever sobre a Madre Sá, regista a dada altura o seguinte:

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"Este regime (republicano) extinguiu as ordens religiosas, tendo conseguido a Madre Sá, com a sua tenacidade e perseverança de remar contra a maré, manter as Casas do Sardão e de Vila do Conde (Colégio de S. José).

A casa da Póvoa (e portanto o Colégio) foi também expropriada e nela se instalou o Liceu e, depois do final de 1914, a nossa unidade militar. Mas, a Madre Sá pleiteou com o Governo reivindicando a posse das casas que pertenceram à sua família, demanda que percorreu as três instâncias tendo até chegado a pedir audiência ao Dr. Afonso Costa, então Ministro da Justiça e dos Cultos, que a recebeu com certa deferência. Vencida a questão, o Governo não restituiu as casas mas deu-lhe uma indemnização simbólica em dinheiro que a Madre Sá entregou às suas Superioras, então emigradas no estrangeiro".

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Foi então no ex-Colégio (feminino) que o Liceu (masculino) teve, pela primeira vez e por pouco tempo, instalações condignas. Veja-se aqui mais informação sobre a Madre Sá.

Em Maio de 1912, a municipalidade poveira pôs a leilão ao menos parte do recheio do Colégio. Um jornal do tempo conta nestes termos o que se passou:

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"Fez-se há dias a venda em leilão de alguns móveis do Colégio das Doroteias, senhoras de grande virtude, ilustração e saber, que a nossa liberdade obrigou a procurar outros países onde a liberdade é talvez menos apregoada, mas certamente menos fictícia e mais verdadeira e prática.

Não assistimos ao leilão, porque não quisemos assistir; e não quisemos assistir por motivos fáceis de prever. Contaram-nos que a dona da casa, a Ex.ma Sra. D. Júlia Sá, muito conhecida e estimada nesta vila, onde nasceu e onde conta as mais reais e afectivas simpatias, assistiu à venda dos objectos que lhe pertenciam, a ela e às suas companheiras de trabalho, numa aparência altiva de desprendimento e resignação.

Aparência, dizemos, porque não se pode deixar de adivinhar o martírio daquela virtuosa e ilustrada senhora ao ver passar para segundo possuidor o que a ela e às suas irmãs tanto custara a adquirir ou a confeccionar.

Quantos objectos de vivas e afectuosas recordações, que representavam meses dum trabalho contínuo e de um esmero dedicado, foram aí arrematados por quem não lhes podia calcular o valor nem apreciar a verdadeira estima!

E tudo isto… em nome da liberdade!

O leilão prossegue. Virá depois outro para o templo do Sagrado Coração de Jesus. Em nome da liberdade, tripudiar-se-á sobre tudo que houver de mais sagrado: sobre bens legitimamente adquiridos e sobre as crenças tradicionais e verdadeiras da maioria, da grande maioria, dos católicos portugueses. Nesta época de venda e aleiloamento dos bens das congregações religiosas, dos passais dos párocos e tudo o mais que se puder aleiloar e vender, tudo vai à maravilha. Não falta quem esfregue as mãos e encha o papo; mas, depois, quando se for a fazer contas, a saber quanto representa tudo isso no cofre da nação, ver-se-á, como é velho costume, que o deficit nacional, em vez de diminuir, como era de esperar, subiu mais uns milharzitos de contos de réis.

Isto é o que ensina a mestra da vida.

O figurino francês, que se vai seguindo, num escrupuloso rigor de copista, diz exactissimamente a mesma coisa. E porque não há-de ser assim se se está vendo, bem claramente, que de muitas coisas de grandíssimo valor já não se sabe o paradeiro?

O que é feito da biblioteca importantíssima dos Franciscanos de Montariol e do seu órgão monumental?

O que é feito das colecções da «Brotéria», cuja notabilidade tinha, há alguns anos, ultrapassado a fronteira e criado admiradores na Europa culta e científica?

Nenhum livre-pensador poderá responder a estes factos; o que poderá é rir-se escarninhamente, por achar tudo muito bem feito… em nome da liberdade!

Pois a todos esses risos escarninhos dos sábios livres-pensadores e republicanos antidemocráticos só lhes vamos contar esta novidade, que talvez ignorem, mas que lhes deve fazer subir a cor ao rosto, de vergonha, se a tiverem: a «Brotéria» dos jesuítas portugueses, que tão grande nome estava dando ao nosso país, está-se, agora, a publicar no Brasil, nessa grande República liberal – esta escreve-se com R grande – onde não há perseguições aos padres, nem a crenças de ninguém, e onde a lei da separação da Igreja do estado se resume em meia dúzia de artigos, que nós devíamos ter copiados nas nossas leis, se tivéssemos respeito pelas crenças religiosas da maioria católica da nação portuguesa.

Já tivemos ocasião de dizer, na administração deste concelho, alto e bom som, quando chamados por suspeita de conspirador – o que foi apenas uma grandíssima patifaria de quem nos acusou, porque nós somos, certamente, mais liberais e mais democráticos do que esses, todos juntos, que nos caluniaram – já tivemos ocasião de dizer, repetimos, que tínhamos, na nossa loucura de destruir, atirado para o estrangeiro, como quem atira felgas para os quintais dos vizinhos, elementos valiosos, homens da verdadeira ciência e forças produtivas que haviam de fazer falta.

Lembra-nos de ter dito, em referência especial às congregações religiosas, que os seus membros, daqui expulsos, já estavam, a maior parte deles, em nações mais adiantadas, mais cultas, mais civilizadas e mais liberais do que a nossa: que tinham ido para a Bélgica, para a Alemanha, para a Espanha, para o Brasil, etc.

Não se verá ainda agora bem a verdade que altivamente afirmamos, apesar desses obreiros da nossa civilização e bem-estar social já darem mostras do seu labor em terras estrangeiras, mas ver-se-á mais tarde, quando se for a fazer o cômputo do que se gasta em má instrução, do que se gasta em má beneficência e da enormidade do deficit nacional, a crescer, a crescer sempre!...

É que no porte aparentemente altivo daquela senhora D. Júlia Sá, que assistiu ao leilão dos seus móveis – e quem sabe se assistirá à venda da sua casa? – havia, lá dentro da alma, lágrimas de muita tristeza, de muita dor, duma dor que não se calcula nem pode medir-se.

E, neste quadro negro, ou branco, como quiserem, vemos nós todos, os que temos melhor filosofia do direito e melhores crenças, o quadro inteiro do que se passa não só na nossa terra, mas em todo o país.

Reproduza um pintor fielmente o carácter aparentemente altivo dessa senhora, que assiste ao leilão dos seus bens e chora interiormente a sua dita, sem vislumbres de descrença, segura da vitória, e terá retratado na tela, esplêndida e brilhante de verdade, toda a vida corrente do catolicismo em Portugal".

O Poveiro (12 de Maio de 1912)

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