sábado, 6 de fevereiro de 2010

CLAREIRAS NA SOMBRA DO PASSADO

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A exposição que se segue é uma palestra proferida na Póvoa de Varzim em 1940, numa homenagem ao então Presidente da Câmara, Dr. Abílio Garcia de Carvalho. O palestrante era um ilustre médico portuense, amigo da juventude do homenageado e, como ele, a seu modo, vítima também da República. Esclarecedora a visão que dá dos derradeiros anos da Monarquia.

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Os últimos anos da monarquia portuguesa foram assinalados pela intensificação da campanha anti-religiosa, que vinha tendo, de longa data, militantes em todas as classes sociais.Não tinha originalidade o ataque à Igreja, nem foram os desmandos do clero português que levantaram protestos ou determinaram reacções.

O espírito de seita francês, sob a bandeira espectaculosa do Livre Pensamento, criou prosélitos em Portugal nos chamados intelectuais e a doutrina dissolvente foi descendo lentamente até às últimas camadas da sociedade portuguesa, como água que rompesse a custo do monte longínquo para a planície.

No meio operário encontrou o fermento anticlerical terreno propício para a sua expansão, preparado previamente pelas doutrinas marxistas que apregoavam o Socialismo como verdadeira Terra da Promissão.

Ora a Igreja condenava o Socialismo como doutrina falsa e contrária ao bem espiritual e até material da sociedade; por consequência, a guerra ao padre constituía logicamente o primeiro capítulo do programa revolucionário para a conquista do paraíso marxista.

Ainda dentro do mesmo espírito de lógica, na luta anticlerical eram acautelados da perseguição, com o salvo-conduto de padres liberais, todos os presbíteros dissolutos, indisciplinados, sem zelo apostólico, complacentes com todos os vícios e com todas as doutrinas que intencionalmente absolviam e até exaltavam a sua vida irregular.

Chegou a felonia dos arautos do anticlericalismo a aventar a ideia da criação, com tais pastores, de uma Igreja nacional, desligada da Igreja de Roma, acusada de ultramontana, expressão retumbante que englobava todos os dislates mais disparatados caluniosamente assacados à Igreja Católica.

Com intenções aleivosas e revoltantemente falsas, surgiram questões religiosas que terminaram com a expulsão de determinadas congregações para aplacar os ânimos mais exaltados dos sectários da mentira.

A nação era estruturalmente católica; o Estado monárquico era católico na lei; as relações com a Santa Sé regulavam-se por Concordata; mas os estadistas monárquicos, salvo raras e honrosas excepções, eram ou anticlericais declarados ou transigentes com o anticlericalismo ou cobardes perante a agressão contra a religião do Estado, que era a religião do povo português.

A nau monárquica soçobrou pela inépcia, cobardia e traição dos seus governantes, das suas autoridades.

A Revolução de 5 de Outubro, como movimento republicano, não passou duma escaramuça sangrenta que a cobardia e traição tornaram triunfante.

A monarquia estava naturalmente condenada à morte, porque os seus baluartes estavam desmantelados e minados pela base.

Eu não conheço páginas da história que mais se pareçam com as dos últimos anos da monarquia portuguesa do que as que reproduzem o reinado de Carlos X da França: os mesmos ódios contra a Igreja, contra Deus, a mesma propaganda agressiva contra o trono e o altar – «palavras pronunciadas ora com uma cólera indignada, ora com uma ironia desprezadora» (Bourget); o mesmo voltairianismo, os mesmos falsos dogmas de 89 que ensanguentaram a França numa trágica prova experimental; os mesmos artifícios diabólicos.

Em 1828 subia ao poder Martignac e passado pouco tempo Carlos X confessava tristemente: «os meus ministros afirmam-me que não podem manter-se sem dar, com o sacrifício dos Jesuítas, uma satisfação à opinião pública…».

De nada valeu a medida violenta e injusta. Em 1830, Carlos X saía da França para o exílio. Os inimigos do ensino religioso, os inimigos de Deus não desarmaram lá como não desarmaram cá.

O fanatismo de uns e o espírito de seita de outros prevalecia na França a despeito de quase meio século de triste, dolorosa e funesta experiência.

Passado pouco menos de um século, o sectarismo anti-religioso em Portugal, em nome dos mesmos princípios de 89, desenvolvia a mesma actividade feroz que derrubou o trono de Carlos X.

Não admira pois que, no advento da República, a guerra à Igreja fosse preocupação dominante. Era o ódio torvo que mandava e a separação violenta da Igreja do Estado, com desprezo absoluto dos compromissos firmados pela Concordata, a confiscação dos bens da Igreja, a expulsão das ordens religiosas, a laicização do ensino, a instituição das cultuais e a lei do divórcio, além de outras medidas violentas contra os católicos, mostravam bem, pela pressa com que foram tomadas, que o espírito de seita, aberta e claramente anti-religioso, se preocupava menos com o bem-estar material do povo do que com a ruína da Igreja, que se chegou a profetizar no período de três gerações.

Neste ambiente de hostilidade aos princípios basilares da religião do povo português, nasceu no Porto, sob o manto protector da Igreja Católica, o Centro Académico de Democracia Cristã, cuja divisa era Deus, Família e Pátria. No seu grémio cabiam todos os estudantes católicos, qualquer que fosse o seu ideal político, desde que este não pretendesse absorver o ideal superior do fim espiritual do homem. A César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus – tal era o nosso lema.

Os fundadores eram poucos a princípio, mas o número de sócios subiu depressa, apesar de constituir um acto heróico a afirmação pública da fé católica.

Entre os seus sócios fundadores estava Abílio Garcia de Carvalho, que primava pela sua assiduidade verdadeiramente exemplar e pelo estudo consciencioso dos problemas católicos.

Era nosso Director Espiritual o cónego Dr. José Correia da Silva, hoje Ilustre Bispo de Leiria. Exercíamos a nossa actividade em estudos sociais católicos tendo como guia a encíclica de Leão XIII – Rerum Novarum. Reuníamo-nos todas as quartas-feiras à noite na sede da Associação Católica, instalada na rua de Passos Manuel, e discutíamos amplamente as teses previamente anunciadas.

Causou justificada sensação um trabalho de Hermínio Coreia, nosso presidente, subordinado ao tema – O operário e o problema social – pela clara visão do assunto.

Multiplicavam-se então as greves das diferentes classes operárias, movimentos tumultuários quase sempre animados sinistramente pelo uso da bomba como argumento convincente. Intervinha brandamente a autoridade porque o povo era soberano; eram ouvidos patrões e operários e o caso arrumava-se satisfazendo as exigências do operariado e aumentando o preço do produto em detrimento do consumidor, a enorme, a esmagadora maioria. Onde está a soberania do povo, exclamava Hermínio Correia? Isto é democracia ou demagogia?

O custo da vida nas cidades ia aumentando constantemente com esses movimentos repetidos, provocados algumas vezes pelos próprios gerentes de grandes empresas, que aproveitavam as greves para aumentar os lucros!

Mais grave que tudo isto era ainda o desequilíbrio económico provocado pelos sucessivos aumentos do custo dos produtos no sector das indústrias têxteis, indústrias parasitárias, vivendo à sombra de pautas proteccionistas que se tinham de agrupar constantemente para a defesa efectiva, mas com prejuízo manifesto para os produtos nacionais exportáveis que encontravam no estrangeiro uma maior barreira de defesa, natural reacção contra as excepcionais medidas proteccionistas. Como resolver a dificuldade? Integrando todas as actividades num vasto plano de economia social, baseada nos princípios salutares de religião e na defesa da família cristã e dar a cada uma o seu justo valor e, se à força se tinha de opor a força, havia mister congregar todos os proprietários rurais, rendeiros ou caseiros e trabalhadores do campo, para quem Deus é o supremo guia por cultura, por tradição e por instinto. Estes constituíam a maioria e tinham por conseguinte o direito de impor a sua vontade, sem opressão, no sentido do equilíbrio económico, atribuindo a cada um o que de direito e por justiça lhe pertencesse.

Hermínio falava com convicção, e na vida prática ainda procurou pôr em acção o seu plano. A morte surpreendeu-o em plena actividade, sendo uma vítima da epidemia pneumónica que grassou após a Grande Guerra. Morreu no Senhor!

Outros assuntos foram versados com mais ou menos erudição, que muito contribuíam para o robustecimento da nossa Fé: a existência de Deus, a imortalidade da alma, os verdadeiros direitos do homem, os sagrados direitos da Igreja, etc.

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A festa da Imaculada Conceição realizada na Associação Católica, no domingo após o dia 8 de Dezembro de 1911, foi revestida de desusado brilho e sobretudo de grande entusiasmo, com emocionantes afirmações de fé.

Assistiu à festa um redactor da gazeta republicana que se julgou no direito de dar um viva à República no meio da solenidade religiosa.

Num intervalo foi advertido amavelmente por nós de que o lugar era impróprio para manifestações políticas republicanas ou monárquicas.

Apesar do tom amistoso da advertência, o redactor não gostou e disse em tom agastado que os católicos já eram conhecidos como inimigos da liberdade e o que acabava de dar-se com ele era uma demonstração clara da escravização do pensamento.

Um dos sócios que, na quarta-feira seguinte, versaria a tese – O divórcio – interveio imprudentemente: «O senhor tem a liberdade até de discutir comigo o divórcio e na quarta-feira aqui estarei às suas ordens, mas nesta festa religiosa não tem o direito de usar da palavra, muito especialmente para expansões políticas como simples convidado, e isso não implica coacção mas simplesmente voa educação».

A sessão decorreu com toda a anormalidade.

Na terça seguinte, eu recebia a incumbência de tratar do assunto da conferência, visto que o sócio que tinha escolhido o tema estava incomodado.

No dia seguinte compareci e mostrei com copiosa argumentação as incompatibilidades do divórcio com a lei natural.

O interlocutor, porém, supunha que eu atacaria a lei da República e desnorteou-se sentindo-se tão diminuído na discussão que confessou não estar preparado para ventilar o assunto sob aquele aspecto. Pediu, porém, que lhe fosse dado o direito de apresentar também ma tese, ao que o presidente H. Correia anuiu muito imprudentemente também.

A tese era – Negação da divindade de Jesus.

Ainda não tinham passado oito dias e já havia rumores de assalto, de hostilidades premeditadas. No dia aprazado o orador não chegou e desenvolver o trabalho: uma multidão ululante vociferava na rua, pretendendo entrar à força; interveio o Governador Civil, que proibiu que lançássemos ou aceitássemos reptos.

Não foi sem perigo que deixamos o edifício.

Aureliano Pessegueiro chegou a correr risco de vida.

Naquela noite foi assaltada a Associação Católica e os nossos pequenos haveres foram desbaratados.

Destruída a sede, reunimo-nos algumas vezes numa pedreira da Serra do Pilar, onde a actividade religiosa foi assunto obrigatório. Nem ali estávamos em segurança e só mais tarde conseguimos ludibriar a perseguição de fanáticos anticlericais, fundando a Juventude Católica, a cujo seio podiam acorrer todos, sem distinção de classes.

Ainda tivemos algumas reuniões; a perseguição odienta contra o Centro levou a maior parte dos sócios, porém, a aderir ao movimento monárquico e depois de várias peripécias quase todos foram parar à cadeia. Eu também paguei o tributo. Saí de lá bastante desiludido da política, e factos ulteriores acabaram com um resto de ilusão que ainda tinha

Veio a Grande Guerra, vieram as grandes provações. Longe da fogueira revolucionária, muitos republicanos em lugares de destaque da política confessavam já com Le Play que o Decálogo continha em resumo todas as condições da moral social dos povos. E a Igreja, que é o Decálogo em acção, na expressão feliz de Bourget, começou a fruir, pouco a pouco, a liberdade a que tem irrecusável direito, como suprema orientadora dos espíritos.

Mais cedo talvez a Igreja recuperaria o seu lugar superior se a nossa desorientação, seguida também por muitos patriotas, não nos levasse ao erro de querer conquistar o reino de Deus com as armas de César.

Faz bem relembrar a um quarto de século o nosso esforço, cuja recordação ainda envolta em névoa de saudade pelo orgulho que sentimos em imitar a congregação do Padre Delpruits, dos tempos calamitosos do Terror, da qual fizeram parte homens eminentes como Laenec e que, quando não tinham outros recursos de oposição e resistência, tinham o refúgio acolhedor e reconfortante da oração.

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Dr. Abel Sousa Pacheco

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