O decreto da extinção das Ordens Religiosas saiu logo em 8 de Outubro de 1910; a Lei da Separação, essa veio alguns meses mais tarde, em 20 de Abril de 1911, mas drástica, brutal.
Esta pequena recolha de artigos dessa lei é indispensável para entender muito do que se passou nesses terríveis anos iniciais da República.
De acordo com o seu artigo 48 (ver abaixo), nenhum bispo ou sacerdote - as principais vítimas da Lei - se podia manifestar contra ela: ela era "intangível". O artigo 26, relativo às associações cultuais, era particularmente gravoso, pois qualquer agnóstico ou, no limite, ateu, podia mandar na igreja do seu lugar, mas o pároco não. E havia ainda nacionalização de todas as igrejas, dos paços episcopais, residências paroquiais, passais, etc., etc.
Pelos vistos, esta é que era a "ética da República" – a da prepotência e silenciamento do opositor, que no caso também era o oprimido e espoliado.
Para que não pareça que estamos a exagerar, veja-se este parágrafo de Joaquim Veríssimo Serrão, na sua História de Portugal [1910-1926], vol. XII, Editorial Verbo, 1995, pág. 131:
Menos de um ano depois da promulgação da lei, já Carlos Malheiro Dias a considerava, com fortes argumentos, inadaptável a Portugal, por não respeitar as condições do meio nem os sentimentos religiosos da população. O ministro da Justiça não tivera em conta estas realidades: «Legislar para as minorias é semear em rochedos. Numa democracia, então, a essa ousadia chama-se absurdo.» O Governo Provisório tinha alienado o capital de confiança que provém, para um novo regime, da extensão das simpatias que recebe. Considerando a medida tomada como «um estrondoso erro político», o mesmo escritor acrescenta como eco do que se tinha como opinião geral: «Nenhuma conveniência, nenhum momentoso interesse nacional, aconselhava o decreto intempestivo, redigido nos termos intolerantes que o notabilizam, e todo ele reflectindo a prosápia, aliás confessada, de exterminar a crença religiosa.» Estas palavras soam hoje como verdade incontroversa que a cegueira política do doutor Afonso Costa não quis reconhecer.
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Recolha
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Artigo 26º (os párocos ficavam subordinados às cultuais)
Os ministros de qualquer religião são absolutamente inelegíveis para membros ou vogais das juntas de paróquia e não podem fazer parte da direcção, administração ou gerência das corporações que forem encarregadas do exercício do culto.
.Artigo 48º (os párocos não podiam comentar a Lei da Separação, que era intangível)
O ministro de qualquer religião, que, no exercício do seu ministério, ou por ocasião de qualquer acto do culto, em sermões, ou em qualquer discurso público verbal, ou em escrito publicado, injuriar alguma autoridade pública ou atacar algum dos seus actos, ou a forma do governo ou as leis da República, ou negar ou, puser em dúvida os direitos do Estado consignados neste decreto e na demais legislação relativa às igrejas, ou provocar a qualquer crime, será condenado na pena do artigo 137° do Código Penal e na perda dos benefícios materiais do Estado.
Artigo 53º (impedimentos à edução religiosa das crianças)
As crianças em idade escolar, que ainda não tiverem comprovado legalmente a sua habilitação em instrução primária elementar, não podem assistir ao culto durante as horas das lições.
Artigo 57º (a realização dos actos públicos de culto ficava a arbítrio dos funcionários da administração)
As cerimónias, procissões e outras manifestações exteriores do culto não poderão permitir-se senão onde e enquanto constituírem um costume inveterado dos cidadãos da respectiva circunscrição, e deverão ser imediata e definitivamente proibidas nas localidades onde os fiéis, ou outros indivíduos sem seu protesto, provocarem, por ocasião delas, tumultos ou alterações da ordem pública.
Artigo 59º (o toque dos sinos era drasticamente limitado)
Os toques dos sinos serão regulados pela autoridade administrativa municipal de acordo com os usos e costumes de cada localidade, contanto que não causem incómodo aos habitantes, e se restrinjam, quando muito, aos casos previstos no decreto de 6 de Agosto de 1833. De noite, os toques de sinos só podem ser autorizados para fins civis e em casos de perigo comum, como incêndios e outros.
Artigo 60º (nem os particulares podiam exibir “emblemas religiosos” nas suas casas)
É proibido, de futuro, sob pena de desobediência, apor qualquer sinal ou emblema religioso nos monumentos públicos, nas fachadas de edifícios particulares, ou em qualquer outro lugar público, à excepção dos edifícios habitualmente destinados ao culto de qualquer religião e dos monumentos funerários ou sepulturas dentro dos cemitérios.
Artigo 62º (nacionalização de catedrais, igrejas e capelas)
Todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários, que têm sido ou se destinavam a ser aplicados ao culto público da religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião e doutros funcionários, empregados e serventuários dela, incluindo as respectivas benfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com personalidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados, mas sem necessidade de avaliação nem de imposição de selos, entregando-se os mobiliários de valor, cujo extravio se recear, provisoriamente, à guarda das juntas de paróquia ou remetendo-se para os depósitos públicos ou para os museus.
Artigo 89º (um acto de cínica generosidade)
As catedrais, igrejas e capelas que têm servido ao exercício público do culto católico, assim como os objectos mobiliários que as guarnecem, serão, na medida do estritamente necessário, cedidos gratuitamente e a título precário pelo Estado ou pelo corpo administrativo local que deles for proprietário, à corporação que nos termos do artigo 17º e seguintes for encarregada do respectivo culto.
Artigo 98º (idem)
Os paços episcopais, os presbitérios e os seminários serão concedidos para a habitação dos ministros da religião católica e para o ensino teológico, sem pagamento de renda, nas condições dos artigos 89º e 93º e nas mais constantes dos artigos seguintes.
Artigo 99º (idem)
Os paços episcopais serão concedidos gratuitamente na parte necessária para a habitação dos actuais prelados em exercício, enquanto eles presidirem às cerimónias cultuais nos respectivos templos, tiverem direito às pensões de que tratam os artigos 113º e seguintes e não incorrerem na perda dos benefícios materiais do Estado.
Artigo 102º (idem)
O Estado concede os actuais edifícios dos seminários de Braga, Porto, Coimbra, Lisboa (S. Vicente) e Évora para o ensino da teologia, sem pagamento de renda, durante cinco anos, a partir de 31 de Agosto próximo.
Artigo 152º (onde o legislador se preocupa com as viúvas dos padres)
Em caso de morte dum ministro do culto católico, ocorrida depois de fixada a pensão, ou desde o dia da proclamação da República, verificando-se, a requerimento dos herdeiros, que teria direito a ela, o Estado concederá metade ou a quarta parte da pensão fixada ou devida às seguintes pessoas de sua família:
1º Se sobreviver somente um dos pais do pensionista, ou ambos, a quarta parte da pensão com sobrevivência para o último.
2º Se sobreviver, além dos pais, ou dum deles, a viúva do pensionista, uma quarta parte da pensão para esta e outra quarta parte para aquele ou aqueles;
3º Se sobreviverem um ou mais filhos menores do pensionista falecido, legítimos ou ilegítimos, metade da pensão para todos eles, enquanto forem menores, com sobrevivência duns para os outros até a maioridade do mais novo;
4º Se, além dos filhos menores, sobreviverem só um ou ambos os pais, ou só a viúva, mãe daqueles, a quarta parte para esta ou para os pais e a quarta parte para os filhos, com sobrevivência duns para os outros;
5º Se, além dos filhos menores, sobreviver só a viúva, que não seja mãe deles, a quarta parte para aqueles e a quarta parte para esta, não havendo sobrevivência recíproca, mas só entre os filhos, nos termos do nº3º;
6º Finalmente, se, além dos filhos menores, sobreviverem um ou ambos os pais e a viúva, a quarta parte para os filhos, a oitava para os pais e outra oitava para a viúva, observando-se quanto às sobrevivências, respectivamente, o disposto nos números anteriores.
Artigo 156º (condenação dos párocos à fome)
A partir da publicação do presente decreto com força de lei, consideram-se extintas, e são em todo o caso inexigíveis em juízo, as prestações em dinheiro ou géneros, com que os paroquianos, por uso e costume, socorriam o seu pároco, compreendendo-se nesta extinção as oblatas ou obradas, as primícias, os sobejos da cera e os demais benesses; e também são inexigíveis em juízo, salvo os casos dos artigos seguintes, os encargos de funerais, enterramentos, ofícios, nocturnos, exéquias e bens da alma e quaisquer outros sufrágios.
Artigo 176º (interdição do uso de batinas em público)
É expressamente proibido, sob pena de desobediência, a partir de 1 de Julho próximo, a todos os ministros de qualquer religião, seminaristas, membros de corporações de assistência e beneficência, encarregadas ou não do culto, empregados e serventuários delas e dos templos, e, em geral, a todos os indivíduos que directa ou indirectamente intervenham ou se destinem a intervir no culto, o uso, fora dos templos e das cerimónias cultuais, de hábitos ou vestes talares.
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Apêndice
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Extinção das Casas Religiosas
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Decreto de 8/10/1910
Art. 1.º - Continua a vigorar como lei da República Portuguesa a de 3 de Setembro de 1750, promulgada sob o regime absoluto e pela qual os jesuítas foram havidos por desnaturalizados e proscritos, e se mandou que efectivamente fossem expulsos de todo o país e seus domínios «para neles mais não poderem entrar».
Art. 2.º - Continua também a vigorar como lei da República Portuguesa a de 28 de Agosto de 1757, igualmente promulgado sob o regime absoluto que «explicando e ampliando» a referida lei de 3 de Setembro de 1759, determinou que os membros da chamada Companhia de Jesus, ou jesuítas, fossem obrigados a sair imediatamente para fora do país e seus domínios.
Art. 3.º- Continua também a vigorar como lei da República Portuguesa o decreto de 28 de Maio de 1834, promulgado sob o regime monárquico representativo, o qual extinguiu em Portugal, Algarve e ilhas adjacentes e domínios portugueses todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens religiosas fosse qual fosse a sua denominação ou regra.
Art. 4.º - É declarado nulo, por ser contrário à letra e ao espírito dos mencionados diplomas, o decreto de 18 de Abril de 1901 que, disfarçadamente, autorizou a constituição de congregações religiosas no país, quando pretextassem dedicar-se exclusivamente à instrução, à beneficência, ou à propaganda da fé e civilização do ultramar.
Art. 5.º - Em consequência e de harmonia com o disposto nos artigos 1.º e 3.º e nos diplomas aí referidos serão expulsos do território da República todos os membros da chamada Companhia de Jesus, qualquer que seja a denominação sob que ela ou eles se disfarcem e tanto estrangeiros ou naturalizados como nascidos em território português ou de pai ou mãe portugueses.
Art. 6.º - Os membros das demais companhias, congregações, conventos, colégios, associações, missões ou outras casas de religiosos pertencentes a ordens regulares serão também expulsos do território da República se forem estrangeiros ou naturalizados e, se florem portugueses, serão compelidos a viver vida secular ou, pelo menos, a não viver em comunidade religiosa.
§1.º Para o efeito da disposição deste artigo, entende-se que vive em comunidade os religiosos pertencentes a quaisquer ordens regulares que residam ou se ajuntem habitualmente na mesma casa ou sucessiva ou alternadamente em diversas casas, em número excedente a três.
§2.º - As pessoas referidas no § anterior são obrigadas a participar ao governo, pelo ministério da justiça, por ofício registado numa estação postal, a localidade do território da República em que estabelecerem o seu domicílio.
Art. 7.º - Os indivíduos compreendidos neste decreto que infrinjam qualquer das suas disposições, ou deixarem de cumprir imediatamente ou no prazo que lhes for marcado, as determinações legítimas da autoridade competente, incorrerão na pena de desobediência qualificada sem prejuízo da responsabilidade que porventura lhes caiba por constituírem associações ilícitas, nos termos do art. 282 do Código Penal, ou associações de malfeitores do art. 283, do mesmo código.
Art. 8.º - Os bens das associações ou casas religiosas serão arrolados e avaliados, procedendo imposição de selos; e os das casas ocupadas pelos jesuítas, tanto móveis como imóveis, serão desde logo declarados pertença do estado.
§ único – Aos bens das outras casas religiosas dar-se-á proximamente destino em decreto orgânico sobre as relações do Estado Português com as igrejas ou em regulamento do presente decreto.
Art. 9.º - A execução deste decreto e dos diplomas mencionados nos art.os 1.º a 3.º fica especialmente incumbida ao ministro da justiça que para esse fim poderá reclamar dos magistrados judiciais e dos procuradores da República, seus delegados e subdelegados, os serviços de que carecer, inclusive para se estabelecer eficazmente a identidade dos indivíduos atingidos por este mesmo decreto.
Art. 10.º - O presente diploma com força d selei entrará imediatamente em vigor e será sujeito à apreciação da próxima assembleia nacional constituinte.
Determina-se, portanto, que todas as autoridades a quem o conhecimento e execução do presente decreto com força de lei pertencer o cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiram ente como nele se o contém.
Os ministros de todas as repartições o façam imprimir, publicar e correr.
Dado nos paços do governo da República aos 8 de Outubro de 1910.
Joaquim Teófilo braga, António José de almeida, Afonso Costa, Amaro de Azevedo Gomes, e Bernardino Machado.
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Transcrito do jornal poveiro Propaganda, de 16/10/1910.
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