A edição de “O Comércio da Póvoa de Varzim” imediatamente posterior à Proclamação da República na Póvoa (dia 10, segunda-feira) usa um tom exaltante e glorificador que merece uma leitura crítica. É o que vamos fazer de seguida.
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A Saudação ao novo regime
O número abre com uma oca tirada poética, onde a República é uma pomba branca pronta a brindar os Portugueses com um período doirado de paz e de felicidade: claramente o cordeiro ia poder pastar ao lado do lobo. Paga a pena ler:
Em todos os edifícios públicos deste pedaço da terra portuguesa flutua, como uma estrela de imenso fulgor, a bandeira da República!
Ela nos indica que uma nova aurora desponta, formosa e bela, para este país até agora preso duma oligarquia que o usufruía como coisa sua, sem atender aos sagrados interesses nacionais.
Enfim, surgiu um novo regime que tem por lema – a paz e o progresso, a ordem e o trabalho, a confraternização entre os portugueses.
A luta heróica, sublime, travada nas ruas de Lisboa para a implantação da República glorifica mais uma vez esta raça incomparável de heróis, aumentando à história pátria mais uma página de imenso fulgor.
Povo assim não morre!
Etc.
Que “luta heróica e sublime” fora essa, pois, cobardemente, ninguém opusera resistência aos golpistas?
A que “confraternização entre os portugueses” se pretenderá aludir? No sábado anterior, já tinha sido decretada a expulsão dos Jesuítas e a extinção das Ordens Religiosas e foi, no mesmo dia em que saiu esta "saudação", que a própria autoridade do concelho mandou para o exílio as Irmãs de Caridade! Claramente havia portugueses que eram mais portugueses que outros (1).
A Póvoa, em concreto, iria viver depois uma profunda divisão, um longo clima de confronto, com as pessoas a espiarem-se mutuamente, e nas outras terras ter-se-á passado coisa semelhante.
Depois de submetido sem êxito a enormes pressões, o pároco poveiro será exilado ainda ano e meio mais tarde! O jornal que ele apoiava, depois de censurado e levado quatro vezes a tribunal pela autoridade republicana, foi encerrado.
Que aurora “formosa e bela” que despontava! Que “paz e progresso” que aí vinham! (2)
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A Proclamação da República
Quanto à Proclamação da República propriamente dita, sabe-se que ela foi assinada na Póvoa por 116 homens, alguns deles ao menos não poveiros. Não é um número muito expressivo (a acta camarária de 29 de Maio de 1846, da Maria da Fonte, foi assinada por 243 homens; mas esta, ao contrário da República, foi uma revolução genuinamente popular).
Os assinantes destas proclamações costumam ser de dois tipos, os paladinos da nova ideia (os seus fanáticos, se se preferir) e os obrigados, isto é, aqueles que em virtude dos seus cargos não podem deixar de colocar lá os nomes, mesmo sem convicção.
Nós sabemos pouco das pessoas que assinaram a proclamação, diremos por isso apenas que só três, talvez de uma dúzia de sacerdotes que então viveriam na pequena Póvoa, têm lá a assinatura. Um surpreende, pois vem logo em quarto lugar. Será que estava ligado à administração concelhia? Outro era o cónego Ricca, fanático republicano, que iria ascender a reitor do Liceu menos de duas semanas adiante e que só assina na terceira página. O terceiro sacerdote é o Prior da Póvoa: assina quase no princípio da segunda página, pouco depois do décimo lugar. A sua assinatura é importante: não o faria só como figura pública, pois sabia que a monarquia recente não fora coisa de muita admiração e, pessoalmente, não era muito dado a temores e estava disposto a lutar.
Mas não estão lá as assinaturas dos conceituados padres António Martins de Faria, Afonso Soares, Micallef Pace (exonerado da reitoria do Liceu em 19 de Outubro daquele ano e onde leccionava desde o seu início) ou a de José Cascão. Dos padres jesuítas nem falemos.
De facto, até pelo que se vê na fotografia então tirada ao ajuntamento frente à Câmara, os assinantes da proclamação deveriam corresponder aos “poucos intelectuais da época, ditos liberais” e a alguns membros da “alta burguesia endinheirada no Brasil bazofiando anticlericalismo com audiência nas tertúlias dos cafés e das bancas do jogo”, que o Mons. Manuel Amorim então assinala na vila.
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Um eufemismo que nos deixa a cabeça à roda
Numas notas, de corrida, na segunda página, regista o número d'O Comércio da Póvoa de Varzim que já citámos que os padres jesuítas e as irmãs do Colégio (as Doroteias) saíram “espontaneamente” da vila. Que eufemismo! Que mentira!
Dos padres jesuítas, sabemos que na noite que precedeu a Proclamação da República na Póvoa, muito sensatamente, se tinham distribuído por casas particulares, o que é uma reacção de pessoas aterrorizadas. Enquanto decorria a proclamação, estariam eles a preparar a partida.
O mesmo susto partilhariam certamente as Irmãs Doroteias, que se esgueiraram logo que puderam, “disfarçadas”. Elas tinham um colégio novo, estavam empenhadas na educação da juventude feminina da vila e arredores, nas suas fileiras havia gente capaz de ir à luta, e agora retiravam-se “espontaneamente”!...
As Irmãs de Caridade, do Hospital, ainda alimentaram a ilusão de poderem continuar a sua actividade, embora sem hábito. No dia, porém, em que sai a edição do jornal, o dia 10, em que se anuncia a tal aurora, “formosa e bela”, o regresso da Idade de Ouro, recebem ordem para partir. De quem a recebem? Do “Sr. Administrador do Concelho”, o Dr. João Pedro, o chefe dos republicanos da Póvoa.
Aquele advérbio espontaneamente é assustador no seu eufemismo. Como é que é possível mudar assim o nome às coisas? O exílio não era um castigo para criminosos?
E ainda escreve o jornal que “têm causado excelente impressão as leis decretadas pelo Governo Provisório”! A eles, republicanos, sem dúvida.
Não cause admiração que insistamos na nota anticlerical da República: contra os cidadãos e cidadãs portugueses religiosos, padres seculares e bispos, é que a República ergueu principalmente a voz, não tanto contra monárquicos, que aliás em grande parte se juntaram aos vencedores. Essa discriminação é a sua marca mais saliente e duradoura, ao arrepio do que acontecia com outras repúblicas, como a dos Estados Unidos e a da Suíça. E, nesse sentido, a sua orientação é tudo menos democrática e avançada; é anti-democrática e retrógrada.
E que mais é que eles fizeram que valha a pena mencionar? Nada!
Para que a Póvoa se possa encontrar com a verdade da sua história – pois à democracia só a verdade e a justiça podem interessar – ela precisa de homenagear as suas vítimas da República, que foram todas pessoas que devotadamente trabalharam para engrandecer a cidade.
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(1) Veja-se o incrível ódio posto no primeiro artigo da Extinção das Casas Religiosas, dirigido contra os Jesuítas:
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Art. 1.º - Continua a vigorar como lei da República Portuguesa a de 3 de Setembro de 1750, promulgada sob o regime absoluto e pela qual os jesuítas foram havidos por desnaturalizados e proscritos, e se mandou que efectivamente fossem expulsos de todo o país e seus domínios “para neles mais não poderem entrar”.
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(2) Compare-se com esta tirada de O Comércio da Póvoa de Varzim o final do editorial de O Poveiro do dia 11, porventura da autoria do Prior local, saído na primeira página, a três colunas:
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Muitos ainda julgam um sonho a proclamação da república em Portugal.
Todavia a realidade aí está evidente.
Consumado o facto, só resta a todo o bom patriota acatar as novas instituições, porque uma guerra civil seria a perda irremediável das colónias e talvez a da nossa autonomia.
O momento é grave e decisivo para a vida da Pátria.
Se todos aceitarmos o novo regime, e ele inaugurar uma administração austera, isenta dos defeitos e erros condenados na monarquia deposta, ainda é possível a regeneração nacional
Se a república governar bem – Viva a República!
Se, porém, a mudança de regime só servir para exercer retaliações, e continuar o desleixo pelo interesse geral: se, numa palavra, a uns corruptos se substituírem outros corruptos, então o pobre Portugal exalará o seu último alento, e seremos em breve os polacos do Ocidente.
Neste caso, a nós, os que temos ainda alma para amar este glorioso torrão onde nascemos, só nos resta exclamar como o poeta Pátria, ao menos, juntos morremos, e morrer com ela.
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A adesão do editorialista ao novo regime é ainda mais entusiasta, mas sempre realista e sem retórica despropositada, sem ponta de saudosismo monárquico, noutro editorial, mais extenso, sob o título de “A nossa atitude”, saído no sábado daquela semana, dia 15.
Por isso terá no futuro toda a autoridade para se opor aos desmandos, e o seu exílio será assim ainda mais nitidamente injusto.