segunda-feira, 1 de março de 2010

VÍTIMAS DA REPÚBLICA NA PÓVOA DE VARZIM

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Pelo que conhecemos da Primeira República, achamos que ela não oferece motivo para comemorações.
Que se há-de comemorar? À parte o modo concreto como o regime se impôs em Portugal - desfavorável para ela - espanhóis e ingleses, monárquicos, viverão pior que portugueses e franceses, republicanos?
Mas há pelo menos, em nosso entender, a necessidade de homenagear as vítimas que o seu feroz e prolongado cerceamento da liberdade de expressão provocou. Se não fosse isso, parece que o golpe de estado de 5 de Outubro de 1910 se teria tornado num episódio menor da história nacional.
A intenção que vai nortear esta página é a de lembrar as vítimas da República. As da Póvoa de Varzim, quase exclusivamente. Houve aí gente expulsa, gente exilada, gente ameaçada, gente espoliada, gente humilhada. Por isso, pretendemos colocar aqui textos de vária procedência que identifiquem tais vítimas e indiquem os enxovalhos que padeceram.
As duas leis que mais contribuíram para estas violências foram a da extinção das Ordens Religiosas (para os jesuítas, expulsão), de 8 de Outubro de 1910, e a Lei da Separação, de 20 de Abril de 1911.
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Sobre o "mérito" dos republicanos, escreveu Rui Ramos (Outra Opinião, Ensaios de História, O Independente, Lisboa, 2004, pág. 24) que “em 5 de Outubro de 1910, os republicamos portugueses derrubaram um regime que honrava os princípios do Estado de Direito e representativo: a concepção do estado como comunidade de cidadãos iguais entre si, o império da lei, a separação e equilíbrio de poderes, etc.” E na contracapa do mesmo livro lê-se que o nosso país “passou o século XX a pagar a factura do 5 de Outubro. A revolução republicana comprometeu os fundamentos institucionais e culturais da democracia representativa em Portugal”.
O branqueamento da República tem como imediata consequência enegrecer o Estado Novo e engrandecer aqueles que lhe resistiram; inversamente, mostrar o seu lado sombrio dá razão àqueles que na década de vinte suspiravam pela ditadura (que levou ao 28 de Maio), apesar de terem a experiência de mais duma década de República. Por isso, só se pode aceitar falar sobre esta numa perspectiva objectiva e isenta, rigorosa; outras posições serão culturalmente irresponsáveis: é demasiado grave o que está em causa.
Criámos uma segunda página para as vítimas da república na Póvoa de Varzim, Vítimas da República II.

Aglomeração de pessoas frente ao edifício da Câmara Municipal poveira aquando da proclamação da República.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O QUE ELES FORAM CAPAZES DE DIZER!

A edição de “O Comércio da Póvoa de Varzim” imediatamente posterior à Proclamação da República na Póvoa (dia 10, segunda-feira) usa um tom exaltante e glorificador que merece uma leitura crítica. É o que vamos fazer de seguida.
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A Saudação ao novo regime

O número abre com uma oca tirada poética, onde a República é uma pomba branca pronta a brindar os Portugueses com um período doirado de paz e de felicidade: claramente o cordeiro ia poder pastar ao lado do lobo. Paga a pena ler:

Em todos os edifícios públicos deste pedaço da terra portuguesa flutua, como uma estrela de imenso fulgor, a bandeira da República!
Ela nos indica que uma nova aurora desponta, formosa e bela, para este país até agora preso duma oligarquia que o usufruía como coisa sua, sem atender aos sagrados interesses nacionais.
Enfim, surgiu um novo regime que tem por lema – a paz e o progresso, a ordem e o trabalho, a confraternização entre os portugueses.
A luta heróica, sublime, travada nas ruas de Lisboa para a implantação da República glorifica mais uma vez esta raça incomparável de heróis, aumentando à história pátria mais uma página de imenso fulgor.
Povo assim não morre!
Etc.

Que “luta heróica e sublime” fora essa, pois, cobardemente, ninguém opusera resistência aos golpistas?
A que “confraternização entre os portugueses” se pretenderá aludir? No sábado anterior, já tinha sido decretada a expulsão dos Jesuítas e a extinção das Ordens Religiosas e foi, no mesmo dia em que saiu esta "saudação", que a própria autoridade do concelho mandou para o exílio as Irmãs de Caridade! Claramente havia portugueses que eram mais portugueses que outros (1).
A Póvoa, em concreto, iria viver depois uma profunda divisão, um longo clima de confronto, com as pessoas a espiarem-se mutuamente, e nas outras terras ter-se-á passado coisa semelhante.
Depois de submetido sem êxito a enormes pressões, o pároco poveiro será exilado ainda ano e meio mais tarde! O jornal que ele apoiava, depois de censurado e levado quatro vezes a tribunal pela autoridade republicana, foi encerrado.
Que aurora “formosa e bela” que despontava! Que “paz e progresso” que aí vinham! (2)
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A Proclamação da República

Quanto à Proclamação da República propriamente dita, sabe-se que ela foi assinada na Póvoa por 116 homens, alguns deles ao menos não poveiros. Não é um número muito expressivo (a acta camarária de 29 de Maio de 1846, da Maria da Fonte, foi assinada por 243 homens; mas esta, ao contrário da República, foi uma revolução genuinamente popular).
Os assinantes destas proclamações costumam ser de dois tipos, os paladinos da nova ideia (os seus fanáticos, se se preferir) e os obrigados, isto é, aqueles que em virtude dos seus cargos não podem deixar de colocar lá os nomes, mesmo sem convicção.
Nós sabemos pouco das pessoas que assinaram a proclamação, diremos por isso apenas que só três, talvez de uma dúzia de sacerdotes que então viveriam na pequena Póvoa, têm lá a assinatura. Um surpreende, pois vem logo em quarto lugar. Será que estava ligado à administração concelhia? Outro era o cónego Ricca, fanático republicano, que iria ascender a reitor do Liceu menos de duas semanas adiante e que só assina na terceira página. O terceiro sacerdote é o Prior da Póvoa: assina quase no princípio da segunda página, pouco depois do décimo lugar. A sua assinatura é importante: não o faria só como figura pública, pois sabia que a monarquia recente não fora coisa de muita admiração e, pessoalmente, não era muito dado a temores e estava disposto a lutar.
Mas não estão lá as assinaturas dos conceituados padres António Martins de Faria, Afonso Soares, Micallef Pace (exonerado da reitoria do Liceu em 19 de Outubro daquele ano e onde leccionava desde o seu início) ou a de José Cascão. Dos padres jesuítas nem falemos.
De facto, até pelo que se vê na fotografia então tirada ao ajuntamento frente à Câmara, os assinantes da proclamação deveriam corresponder aos “poucos intelectuais da época, ditos liberais” e a alguns membros da “alta burguesia endinheirada no Brasil bazofiando anticlericalismo com audncia nas tertúlias dos cafés e das bancas do jogo”, que o Mons. Manuel Amorim então assinala na vila.
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Um eufemismo que nos deixa a cabeça à roda

Numas notas, de corrida, na segunda página, regista o número d'O Comércio da Póvoa de Varzim que já citámos que os padres jesuítas e as irmãs do Colégio (as Doroteias) saíram “espontaneamente” da vila. Que eufemismo! Que mentira!
Dos padres jesuítas, sabemos que na noite que precedeu a Proclamação da República na Póvoa, muito sensatamente, se tinham distribuído por casas particulares, o que é uma reacção de pessoas aterrorizadas. Enquanto decorria a proclamação, estariam eles a preparar a partida.
O mesmo susto partilhariam certamente as Irmãs Doroteias, que se esgueiraram logo que puderam, “disfarçadas”. Elas tinham um colégio novo, estavam empenhadas na educação da juventude feminina da vila e arredores, nas suas fileiras havia gente capaz de ir à luta, e agora retiravam-se “espontaneamente”!...
As Irmãs de Caridade, do Hospital, ainda alimentaram a ilusão de poderem continuar a sua actividade, embora sem hábito. No dia, porém, em que sai a edição do jornal, o dia 10, em que se anuncia a tal aurora, “formosa e bela”, o regresso da Idade de Ouro, recebem ordem para partir. De quem a recebem? Do “Sr. Administrador do Concelho”, o Dr. João Pedro, o chefe dos republicanos da Póvoa.
Aquele advérbio espontaneamente é assustador no seu eufemismo. Como é que é possível mudar assim o nome às coisas? O exílio não era um castigo para criminosos?
E ainda escreve o jornal que “têm causado excelente impressão as leis decretadas pelo Governo Provisório”! A eles, republicanos, sem dúvida.
Não cause admiração que insistamos na nota anticlerical da República: contra os cidadãos e cidadãs portugueses religiosos, padres seculares e bispos, é que a República ergueu principalmente a voz, não tanto contra monárquicos, que aliás em grande parte se juntaram aos vencedores. Essa discriminação é a sua marca mais saliente e duradoura, ao arrepio do que acontecia com outras repúblicas, como a dos Estados Unidos e a da Suíça. E, nesse sentido, a sua orientação é tudo menos democrática e avançada; é anti-democrática e retrógrada.
E que mais é que eles fizeram que valha a pena mencionar? Nada!
Para que a Póvoa se possa encontrar com a verdade da sua história – pois à democracia só a verdade e a justiça podem interessar – ela precisa de homenagear as suas vítimas da República, que foram todas pessoas que devotadamente trabalharam para engrandecer a cidade.
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(1) Veja-se o incrível ódio posto no primeiro artigo da Extinção das Casas Religiosas, dirigido contra os Jesuítas:
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Art. 1.º - Continua a vigorar como lei da República Portuguesa a de 3 de Setembro de 1750, promulgada sob o regime absoluto e pela qual os jesuítas foram havidos por desnaturalizados e proscritos, e se mandou que efectivamente fossem expulsos de todo o país e seus domínios “para neles mais não poderem entrar”.
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(2) Compare-se com esta tirada de O Comércio da Póvoa de Varzim o final do editorial de O Poveiro do dia 11, porventura da autoria do Prior local, saído na primeira página, a três colunas:
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Muitos ainda julgam um sonho a proclamação da república em Portugal.
Todavia a realidade aí está evidente.
Consumado o facto, só resta a todo o bom patriota acatar as novas instituições, porque uma guerra civil seria a perda irremediável das colónias e talvez a da nossa autonomia.
O momento é grave e decisivo para a vida da Pátria.
Se todos aceitarmos o novo regime, e ele inaugurar uma administração austera, isenta dos defeitos e erros condenados na monarquia deposta, ainda é possível a regeneração nacional
Se a república governar bem – Viva a República!
Se, porém, a mudança de regime só servir para exercer retaliações, e continuar o desleixo pelo interesse geral: se, numa palavra, a uns corruptos se substituírem outros corruptos, então o pobre Portugal exalará o seu último alento, e seremos em breve os polacos do Ocidente.
Neste caso, a nós, os que temos ainda alma para amar este glorioso torrão onde nascemos, só nos resta exclamar como o poeta Pátria, ao menos, juntos morremos, e morrer com ela.
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A adesão do editorialista ao novo regime é ainda mais entusiasta, mas sempre realista e sem retórica despropositada, sem ponta de saudosismo monárquico, noutro editorial, mais extenso, sob o título de “A nossa atitude”, saído no sábado daquela semana, dia 15.
Por isso terá no futuro toda a autoridade para se opor aos desmandos, e o seu exílio será assim ainda mais nitidamente injusto.

A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS DA PÓVOA DE VARZIM


No seu artigo saído no Boletim Cultural Póvoa de Varzim, 1996-97, vol. XXXIII, páginas 130-131 (consulte-se aqui a totalidade dele), o Mons. Manuel Amorim, ao falar da expulsão dos Jesuítas da Póvoa de Varzim, transcreve um documento que se exprime deste modo:
No dia 6 de Outubro de 1910, pela tarde, soube-se na residência (era uma casa de madeira junto às obras da Basílica em construção) da Póvoa de Varzim, que a república estava proclamada, em Lisboa.
Aquela noite já não dormimos na residência. Os P.es Alves e Falcão foram para a casa do Sr. Padre Moreira; o P.e Lourenço para a do Sr. Padre José da Silva; o R. P. Superior e eu para as das Senhoras Azuraras. De guarda ao SS. Sacramento ficou um nosso amigo com os dois irmãos coadjutores. A noite decorreu pacificamente. Na madrugada do dia seguinte, voltaram os padres ao seu posto. Disseram missa, distribuíram a sagrada eucaristia a muitos fiéis e confessaram até as 10 horas, pois era a primeira sexta-feira do mês.
Depois do jantar, o Superior chamou ao quatro os padres, repartiu com eles o dinheiro que havia, abraçou-os e despediu-os, segundo refere o P.e Alves, com estas palavras: - Vão para onde Nosso Senhor lhes inspirar...
Três partiram para Braga em carro fechado: eram os padres Alves, Falcão e Pacheco. Os dois restantes com os irmãos coadjutores saíram no dia oito, também, em carro, para Famalicão; daí o P.e Manuel Lourenço e o irmão Saraiva retiraram pelo Porto para suas casas; o P.e Arraiano recolheu-se com o irmão Martins em Ronfe até o dia 15, em que foi, com o companheiro, para La Guardia.
E acrescenta o Monsenhor:
Segundo uma testemunha presente a despedida dos padres foi emocionante mas discreta. Tudo se passou dentro do templo, entre orações e lágrimas de centenas de pessoas compungidas pela sorte dos zelosos sacerdotes aos quais entregavam esmolas para obviar ao seu futuro incerto. Eles eram muito estimados na Póvoa e as principais famílias obsequiaram-nos com provas de solidariedade dignas de registo. Também tinham alguns inimigos, é certo, quer entre uns poucos intelectuais da época, ditos liberais, quer na alta burguesia endinheirada no Brasil bazofiando anticlericalismo com audiência nas tertúlias dos cafés e das bancas do jogo. Para estes, a paragem das obras do grandioso templo (a Basílica) constituía maior perda para a Póvoa do que a ausência dos jesuítas.
O jornal "A Propaganda", que todo se embandeirou com a efígie leonina do Marquês, reproduzindo as leis persecutórias agora postas em prática pela implume república, depois de se referir à expulsão das religiosas do Colégio (Irmãs Doroteias) e do Hospital acrescenta: "... Também já retiraram os jesuítas residentes na casa anexa à igreja do Coração de Jesus, em construção”.
A fuga dos padres jesuítas não foi nem apressada nem nascida de medo infundado. O que se passava em Lisboa era prenúncio do que os esperava por cá. Ora em Lisboa não decorria nada de animador, como se pode concluir desta citação de Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal [1910-1926], vol. XI, Editorial Verbo, 1995, pág. 52:
Ainda na madrugada de 5 de Outubro foi assaltado o colégio dos jesuítas de Campolide, sendo presos o reitor, padre Alexandre de Faria Barros, outros professores religiosos e alguns empregados. [...] Mas como se não tornasse possível a sua guarda neste edifício [quartel de Artilharia I], vieram a ser transferidos para Caxias, no meio dos maiores insultos da população. [...] O Colégio do Barro, em Torres Vedras, e as residências de Vale do Rosal e de Setúbal viriam também a ser invadidos e vasculhadas, em actos que tiveram com frequência as marcas do desrespeito e do vandalismo.
De extrema gravidade foi o assassínio, ainda no dia 4 de Outubro, do padre Bernardino Barros Gomes, na casa dos lazaristas de Arroios. A multidão tratou-o com requintes de crueldade, antes de tirar a vida ao piedoso sacerdote, que era também um naturalista considerado. O padre francês Alfred Fargues, que vivia na Igreja de S. Luís, sofreu a tiro o mesmo suplício, causando as suas mortes a maior repulsa.
Na Imagem: prisão dum padre ao tempo da República, segundo um jornal inglês, que os de cá não ousariam publicar tais coisas.
Fonte: História de Portugal acima citada.

AS IRMÃS DOROTEIAS PARTEM PARA O EXÍLIO


A ordem de expatriação dos Jesuítas não se aplicava do mesmo modo às outras Ordens e Congregações Religiosas. A ideia da sua extinção mantinha-se, o agravo era semelhante e aliás participado, ainda assim a situação destes era diferente.
Voltamos a citar Joaquim Veríssimo Serrão, pág. 58:
Se se tratasse de religiosos portugueses, “referia o artigo 6.º [do decreto de 8 de Outubro; veja-se abaixo], seriam compelidos a viver vida secular ou, pelo menos, a não viver em comunidade religiosa. Este artigo correspondia a uma verdadeira aberração quanto aos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, meio ano depois inscritos no artigo 3.º da Constituição de 1911. O § 1.º do artigo 6.º ia mais longe na violência punitiva: «Para o efeito da disposição deste artigo, entende-se que vivem em comunidade os religiosos, pertencentes a quaisquer ordens regulares, que residam ou se ajuntem habitualmente na mesma casa, ou sucessiva ou alternadamente em diversas casas, em número excedente a três». Recorrendo a disposição pombalina, Afonso Costa cometia o grave erro de deslocar o problema religioso do seu enquadramento temporal, abrindo o campo às maiores violações da consciência individual”.

Quando adiante se vir a Madre Sá, a que um jornal há-de chamar Sra. Júlia Sá, não é de estranhar: ela está sem hábito e portanto dentro da legalidade.
Veja-se agora esta notícia do jornal O Poveiro, de 11 de Outubro de 1910 (três dias depois da publicação da lei), que nos mostra as Doroteias poveiras em fuga:No sábado último, os noviços do convento dos Franciscanos da freguesia de Barqueiros, lugar das Necessidades, concelho de Barcelos, cujo convento é filial do de Varatojo e Montariol, de Braga, embarcaram na estação do cominho de ferro de Laundos, para os lados de Famalicão, não se sabendo o destino que tomaram; mas provavelmente para irem para as casas das suas famílias.
No mesmo comboio, em direcção às Fontainhas (em Balasar), embarcaram as Doroteias da Póvoa, disfarçadas.
Daquela estação dirigiram-se à freguesia de Gueral, concelho de Barcelos, para casa duma educanda que eles (sic) tinham fanatizado, e onde se encontram até verem no que param as coisas.
As Irmãs Doroteias haviam de regressar a partir de 1923; um pouco mais adiante puseram em marcha a obra do novo colégio, o Colégio do Sagrado Coração de Jesus.
Na imagem: antigo Colégio das Doroteias.

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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A EXPULSÃO DAS IRMÃS DE CARIDADE DO HOSPITAL POVEIRO

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As Irmãs de Caridade tinham vindo para o Hospital da Misericórdia da Póvoa de Varzim em 1 de Outubro de 1890, em condições bastante precárias, como informa Bernardino Faria em artigo saído na revista “Póvoa de Varzim” de Outubro de 1913: para além da comida e dormida, tinham direito a um hábito novo por ano. Na altura já o anticlericalismo grassava na vila:

Na rua, transitavam invariavelmente aos pares, quase sempre por caminhos os mais curtos e escusos, esquivando-se dos lugares onde houvesse pessoas que as incomodassem e, principalmente quando para cá vieram, o rapazio e até adultos as surriavam bastante, com ditos mais ou menos picantes como os seguintes:
- As Irmãs de Caridade… pum!
Elas, com a vista baixa, lá seguiam o seu caminho, sem protesto ou indignação. E só raríssimas vezes respondiam, risonhas e amáveis.
A este propósito, lemos num jornal poveiro que uma vez uma das irmãs andava a pedir e dirigiu-se a um vendedor de peixe, que lhe escarrou na mão. Ela limpou-a e continuou: - Isso foi para mim, agora dê-me alguma coisa para os meus pobres.
Mas continuemos a ouvir Bernardino Faria:

Com o advento da República Portuguesa, e no sábado 8 de Outubro de 1910, tiveram conhecimento as irmãs que a autoridade administrativa por ordens superiores as não deixava continuar com hábitos talares (entenda-se, hábito). Algumas distintas senhoras desta vila, logo que souberam do facto, lhes enviaram diversas roupas e por sua vez a mesa de então ordenou que comprassem fazendas e fizessem as roupas que faltavam, para que trajassem civilmente, persuadidas que ficariam continuando com o seu mister. Porém, logo na segunda-feira, 10 do mesmo mês, foram elas avisadas pelo Sr. Administrador do Concelho que não podiam continuar mais ali, nem mesmo com outras vestes.
Imagine-se os apuros e sustos das irmãs, receosas de serem presas; e, atarantadas e chorosas, partiram nesse mesmo dia até às duas horas da tarde, à excepção da velha Esperança, cozinheira da primitiva, quase inutilizada e sem família que a recebesse, que ficou e foi depois admitida como asilada, mas ultimamente também retirou para parte incerta.
As irmãs que estavam no hospital por ocasião da expulsão eram:
Superiora – Carolina da Apresentação
Cozinheira – Maria dos Anjos
Dos asilados – S. Boaventura
Banco – Francisca
Medicina (homens) – S.to Ângelo
Medicina (mulheres) – Socorro
Cirurgia (mulheres) – Firmina
Velha cozinheira – Esperança
Este procedimento republicano discriminatório é evidentemente reprovável e sem desculpa. Hoje cremos que é considerado crime, mas nenhuma consciência bem formada podia então tolerá-lo.

Democracia republicana

(Apontamento apresentado numa rádio local da Póvoa de Varzim em Outubro de 2011)

Como há dias se celebrou o 5 de Outubro, vou hoje dar conta de dois acontecimentos de há 100 anos atrás, um de princípios de Agosto, outro de fins de Julho.
Os ouvintes estarão lembrados que eu tive alguma intervenção local na comemoração do centenário da República, uma intervenção crítica, como me parecia que era oportuno. O tema era para mim de especial importância por implicar com a infância da pequena que é hoje a Beata Alexandrina. Evoquei por isso factos graves, da responsabilidade dos fanáticos do novo regime. Mas o centenário dos mais desses factos ainda está a decorrer ou vem a caminho, pois tiveram lugar em 1911 ou 1912. O primeiro dos dois acontecimentos que vou evocar tem a ver com arrolamento dos bens das paróquias.
A República pretendia acabar com a Igreja e tomou gravosas medidas no sentido de alcançar este objectivo, como, entre outras, tentar privar os párocos de qualquer rendimento económico, para os dominar pela penúria.
Nos meus apontamentos anteriores, falei das igrejas pequeninas e antigas. A sua construção, manutenção e actualização foram tarefas custosíssimas para aquelas comunidades de tão poucos recursos. Mas era lá que praticavam os actos mais importantes da vida, como o baptizado, o casamento, e que finalmente eram sepultados, ou no seu adro. Ora a República, tiranicamente, sem apelo, nacionalizou-as todas.
Há um ano atrás, eu não conhecia nenhum dos documentos concretos dessas nacionalizações, os chamados arrolamentos. Hoje conheço um, o único que subsiste no concelho da Póvoa e que é o de Terroso. Começa assim:
Aos oito dias do mês de agosto do ano de 1911, nesta freguesia de Terroso, estando presentes os membros que compõem a comissão concelhia de inventário, senhores António dos Santos Graça, administrador e presidente, Mário da Silva Monteiro, servindo de secretário de finanças, e Domingos António Vieira da Silva, presidente da comissão paroquial respectiva, a fim de, de harmonia com o artigo sessenta e dois da Lei da Separação, se proceder ao arrolamento dos bens pertencentes às igrejas, como fez, principiando pela forma seguinte:
Nº 1, bens imobiliários […].
Uma vez uma poveira referia-se a Santos Graça, com alguma ironia, como o democrata. Que democracia havia num acto destes? Não estava aqui a usurpação mais vil dum direito elementar?
E ele não vinha como funcionário que se limita a cumprir o que a autoridade lhe manda. Não, ele, como o documento afirma, era a autoridade, o administrador do concelho, um cargo que assumiu voluntariamente. Foi ele que levou a tribunal quatro vezes o jornal O Poveiro, foi ele o censurou, que finalmente o silenciou e que expulsou o Prior da Póvoa.
A tirania dos arrolamentos era execrável. Mas num caso como o de Balasar então enchia as medidas. A igreja entrara ao culto no final de 1909, ainda inacabada, paga pelo povo da freguesia. Pois agora, ainda a cheirar a tinta, era nacionalizada.
Veja-se agora o que se tinha passado no Outeiro Maior uma semana antes da ida de Santos Graça a Terroso. Na pequena freguesia celebrava-se uma participada festa ao Coração de Jesus. No dia, de manhã, houvera comunhão geral e, de tarde, realizara-se uma procissão em honra do SS. Sacramento. Passo a ler uma notícia saída no semanário O Poveiro, o tal que era protegido pelo Prior.
Como que a pôr um embargo à alegria que todos sentiam no meio de tão linda e religiosa festividade, por ser a única que agrada e consola o coração do verdadeiro cristão e está no ânimo de todos os habitantes desta freguesia, apareceu um ofício do cidadão Administrador do Concelho de Vila do Conde, com a nota de “urgente”, que ao conhecer-se produziu o efeito de um frigidíssimo duche. Dizia assim:
Tendo conhecimento de que nessa freguesia se costuma anualmente fazer umas práticas e confissões, sob a denominação de Coração de Jesus, tenho a dizer-lhe que tais práticas são proibidas e punidas por lei. Queira pois não consentir e participar-me, caso não sejam acatadas as minhas ordens. Saúde e fraternidade.
Ao cidadão regedor da freguesia de Outeiro.
Vila do Conde, 27 de Julho de 1911.
O Administrador do Concelho – Luís da Silva Neves.
Que desastrado fervor republicano o dos administradores destes dois concelhos vizinhos! Então era “proibido e punido por lei” celebrar uma festa em honra do Sagrado Coração de Jesus?

Na imagem, página inicial do Auto de Arrolamento dos bens paroquiais de Terroso.



A BEATA ALEXANDRINA E A REPÚBLICA

A pequena Alexandrina veio para a Póvoa de Varzim em Janeiro de 1911, para a Escola Mónica Cardia, que ficava frente à actual estação do Metro, e viveu em casa dum carpinteiro, na Rua da Junqueira.
Como na altura a Póvoa ainda era uma única paróquia, ela era paroquiana da Matriz, de que era Prior o P.e Manuel Martins Gonçalves da Silva, o padre viúvo, como lhe chamavam, pois fora casado por pouco tempo (antes de concluir os estudos de teologia, naturalmente).
Nesse Janeiro, já os Padres Jesuítas, as Irmãs Doroteias e as Irmãs de Caridade tinham ido embora há dois meses, mas sabe-se que estava bem vivo o ódio de republicanos e carbonários contra a Igreja, com a então vila dividida.
Certo, certo é que o pároco local reagia duramente ao ambiente persecutório, o que o levará, em Março de 1912, para o exílio.
Quando, em Abril de 1911, vem a Lei da Separação, a situação complica-se ainda muito mais. E segundo a “democracia” dessa lei, os párocos nem a podiam comentar. E as penas eram muito severas. A situação tornou-se terrível para padres e fiéis empenhados.
Segundo tal tirânica lei, a pequena Alexandrina mal estava autorizada a frequentar a igreja, mas pelos vistos frequentou-a sempre.
A lei estabelecia:
As crianças em idade escolar, que ainda não tiverem comprovado legalmente a sua habilitação em instrução primária elementar, não podem assistir ao culto durante as horas das lições.
Mas isto devia querer dizer coisa diferente do que à primeira vista se entende. Que eram “as horas das lições”? E onde estava o ensino que todos pudessem frequentar?
Diz a Alexandrina que fez a Primeira Comunhão com sete anos de idade e que a encarregada da sua educação a levava a comungar diariamente.
Se a indicação dos sete anos de idade estiver certa, então ela, que fizera sete anos em finais de Março, teria comungado pela primeira vez próximo da Páscoa de 1911. De facto, porém, é possível que ela só tenha feito a Primeira Comunhão, e também o Crisma, no ano seguinte.
Aliás, o Crisma, recebeu-o em Vila do Conde das mãos dum bispo no exílio, o então Bispo do Algarve (1). Participaria na cerimónia o seu pároco poveiro, exilado na mesma terra.
Ainda na Póvoa de Varzim - escreveu a Alexandrina - lembro-me que tinha muito respeito pelos sacerdotes. Quando estava sentada à porta da rua, só ou com a minha irmã e primas, levantava-me sempre à sua passagem, e eles correspondiam tirando o chapéu, se era de longe, ou dando-me a bênção se passavam junto de mim. Observei algumas vezes que várias pessoas reparavam nisto e eu gostava e até chegava a sentar-me propositadamente para ter ocasião de me levantar no momento em que passavam por mim, só para ter o gosto de mostrar a minha dedicação e respeito pelos ministros do Senhor.
Esta informação ajusta-se bem à quadra com que, segundo a sua irmã, a Alexandrina gostava de irritar os guardas-republicanos, e que era esta:
Co'as barbas de Afonso Costa
Nós faremos um pincel
Para limpar as botas
Ao bom Rei D. Manuel.
Não sabemos se estes versos correspondem rigorosamente ao que ela cantava, já que os traduzimos do italiano, do livro Cristo Gesù in Alexandrina (Alexandrina Maria da Costa, selecção e tradução de textos por Humberto Pasquale, edição extracomercial, Turim, Itália).
Mas um dia os guardas-republicanos assustaram-na muito. A ela e à irmã:
Depois de umas férias, ia para a Póvoa, eu e a minha irmã; tínhamos quem nos acompanhasse, mas só depois de atravessarmos a freguesia. Íamos pelo caminho-de-ferro e avistámos ao longe dois guardas-republicanos. Tivemos medo deles e refugiámo-nos na volta de um caminho. Como minha irmã levasse um cestinho com linho, eles imaginaram que ela levava fósforos (espera-galegos) – proibidos naquele tempo – e perseguiram-nos. Nós fugimos e gritámos muito. Aos nossos gritos acudiram várias pessoas. Já estavam para fazer fogo quando compreenderam que não éramos portadoras de tal contrabando. Felizmente desta vez escapámos à morte.
A concluir, há uma pergunta que se deve fazer: que pensará mais tarde uma pessoa como a Alexandrina sobre os perseguidores da sua infância, a quem teve de resistir? Que regime opressor fora esse?

(1) D. António Barbosa Leão viu-se obrigado a viver de esmolas durante dois anos. Mais tarde, foi bispo do Porto.